Vem, senta aqui...
Assim mesmo, asa avessa, do jeito que estás.
Me deixa te contar dos dezoito mil sóis que me habitam e dos duzentos e sessenta e dois satélites que orbitam teu planeta.
Se tivermos tempo, ainda te direi dos meus sessenta e sete novos tipos de medo,
embora, pelos ponteiros do nosso desajustado relógio,
essas cento e noventa e duas horas,
sem bloqueios,
são tanto poucas para quem muito teme o que sente...
Decerto, como bem te sei
- indomável, teimosa e silvestre que és -
amanhã, talvez, não haverá mais horas para eu somar.
Então, vem, e façamos do teu jeito, pois não contesto nada do que disseste antes. Sei que estás certa e plena quando me contas sobre amor. Contudo, eu também sei que,
hoje, ele não é sempre assim,
como os humanistas, religiosos e poetas,
um dia, descreveram-no.
Meus olhos... Tu vês?
Eles te alegram, assustam ou fazem chorar?
Minhas rugas... Vês?
São marcas deixadas pelas garras do tempo,
que estórias de princesas habilidosas e príncipes mocorongos não irão,
ao colo,
ninar.
Porque o amor, Sherazade, é desatento às atitudes
e comportamentos;
às omissões,
às inverdades.
Ele precisa ceder a outras vicissitudes e confiar no que mais clama por atenção,
coisas que parecem inúteis num conto de fadas, mas que pesam nas mãos de um ourives como eu,
que esculpe suas bodas de ouro
no mármore dos anos.
O amor não é invencível, Camille.
Atenta:
O que mais vês?
Repara nos fios de cabelo que já não tenho...
Sabes tão bem que eu escolhi perdê-los.
Toca-lhes a imagem do que é a brevidade da vida,
amolada e refletida em lâminas de aço.
Sente... Teus finos dedos conhecem os caminhos de leveza do meu voo
e a costa do mar onde dorme oceano.
Escuta a canção,
alça tuas asas,
no alto
e dança...
Dança no varal de cordas,
junto aos fios,
aos cachos,
às garças e gaivotas
que afinam a voz de seus bicos
nas ondas sonoras
da minha máquina de cortar.
Decerto, tantas vezes mais
sonharás
com orquídeas negras e rosas
trepadeiras
entrelaçando raízes sobre umbrais
de janelas,
na primavera,
ou rastejando comigo entre folhagens,
faíscas de velas.
Agora vês?
Podes ver o céu onde escrevo com pó de estrelas o poema pela lua derramado?
Pioggia, enquanto o que está em oculto germinar detalhes que parecem bobos, não me entrego mais ao amor como outrora a ti me entreguei.
Por fim, aceito o que propões.
Então vai, vai... Vai logo!
Se isso é o que desejas.
Mas, dessa feita,
quando um dia partirmos
eu
tu
o amor e toda
nossa estranheza
Sega não mais haverá.
Jogaremos asfalto sobre os campos,
enquanto os pássaros
migrarão com suas sementes para o reduto das memórias renegadas;
e celebrarei esse dia como aquele em que o amor, para mim, não fez nada.
Porém, sei que tu
- Ah... Como tão bem sei! -
não visitarás meu túmulo com flores arrancadas, se a morte não pede para ser adornada com mais morte.
E as tuas memórias jamais renegadas,
com sementes não serão plantadas,
pois, tal pássaros,
renasceremos asas delas.
(Mell Shirley Soares)
Nenhum comentário:
Postar um comentário