Testamento de Ismael Nery


Esperei até hoje para que vos me descobrísseis. Quis dar-vos o prazer de vos sentir crescer. A minha excessiva proximidade impediu, porém, que me olhásseis como realmente sou. Contar-vos-ei agora a minha história, e descreverei o meu físico para que disto tireis o proveito necessário e justifiqueis a minha e a vossa existência.
Pertenço a esta espécie de homens que não constroem nem destroem, mas que explicam toda a construção e toda a destruição. Eu sou um predestinado, como foram também, meus predecessores e como serão os meus sucessores. Através dos séculos deveremos desenvolver o gene que no princípio da vida recebemos. Nós somos os grandes sacrificados que sofrem por todo o erro e atraso dos homens. Somos os homens que amam e consolam: não somos amados nem consolados. Se não fossemos portadores do germe de que vos falei, há muito que a nossa raça teria acabado violentamente. Quando tudo tiver atingido seu fim, aí começara nossa visível utilidade. O homem agora distribui suas esperanças na arte e na ciência. Chegará um tempo em que a arte e a ciência não bastarão mais para suprir a ânsia crescente de compreensão que a humanidade tem. Toda a arte resume-se em suprir as necessidades científicas, toda a ciência resume-se num estudo do equilíbrio da vida e numa tentativa formidável de conhecimento da matéria da vida. Ah! Se nós nos pudéssemos conhecer, ou se, pelo menos, pudéssemos chegar a conhecer um outro homem! A solidão do homem é o que mais o apavora na vida. Os homens se olham como desconhecidos com as mesmas roupas. Vivemos desconfiados – tudo fazemos para garantir o que possuímos, com medo dos ladrões de toda espécie que vemos em todos os homens. 
Inventamos o direito e a polícia; pomos em nossas casas grades de ferro e portas de bronze. O homem se esquece de que o que possui moralmente não é acessível aos ladrões, mas aumenta seu desassossego comas suas posses fiscais, esquecendo a ciência por ele já conquistada. Para que guardais uma mulher que não é vossa? Para que vos bateis por uma ideia que não sentis? Para que duas casas com um só corpo? Para que o sustento de uma vida sem consolo? Ah, a esperança! Que é a esperança? Tenhamos esperança – aumentamos a esperança – eu em Deus e vós em mim e em meus sucessores. Um conselho vos dou, com a autoridade que me conferem as rugas de minha testa, o meu olhar febril e minhas mãos mutiladas: não façais o que vos causar nojo, mesmo que tal nojo seja mínimo. Orientai vossa ciência para conseguirdes um aumento micrométrico de vossas sensibilidades. Já reparastes, meus irmãos, que vivemos num mundo em que existem soldados, juízes e prostitutas? Onde se encarcera um homem pelo depoimento da testemunha, ou se enforca um outro por insultar um líder? Existem testemunhas? Existem líderes? Que é a vontade do povo? Que é o bem geral? Já fizestes, com a ciência que tendes, a psicologia de um chefe? Por que não acreditar em Deus, quando acreditais até nos regimes políticos? 
A humanidade, como as plantas, precisa de estrume. Dos nossos corpos renasceram aqueles corpos gloriosos que encerram as almas dos poetas, aquele de que nós já trazemos o germe. Tudo foi feito no princípio – porém tudo só existirá realmente em tempos diversos. Os poetas serão os últimos homens a existir, porque neles é que se manifesta a vocação transcendente do homem. 
Todo o homem recita um poema na véspera de sua morte. A humanidade recitará também o seu nas vésperas da sua, pela boca de todos os homens que nesse tempo serão poetas.
– “Mirabili Dominus in opera ens”. (Novembro – 1933)

Ismael Nery


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