Que esplêndida lagoa é o silêncio
Ali na margem um sino espera
Mas ninguém ousa afundar o remo
Que esplêndida lagoa é o silêncio
Ali na margem um sino espera
Mas ninguém ousa afundar o remo
No tempo
em que havia ruas,
ao fim da tarde
minha mãe nos convocava:
era a hora do regresso.
E a rua entrava
connosco em casa.
Tanto o Tempo
morava em nós
que dispensávamos futuro.
Recolhida em meu quarto,
a cidade adormecia
no mesmo embalo da nossa mãe.
À entrada da cama,
eu sacudia a areia dos sonhos
e despertava vidas além.
Entre casa e mundo
nenhuma porta cabia:
que fechadura encerra
os dois lados do infinito?
Mia Couto
além deste vagar, um caminho extenso,
debaixo de uma chuva que não para
meus olhos correm enquanto eu, só, penso:
- por que meu coração ainda dispara
se lembro da poética seara?
um campo em flores de versos; imenso,
desabrochado em rimas ricas, raras
incauto jardineiro, me convenço
de que esta chuva que cai sem dar trégua
encharcando o caminho em mais de léguas
são lágrimas do meu peito em estio
além deste vagar, meu olhar se deita
e planta um verso calmo, que se ajeita
entre a semente, o tempo e o vento frio
Marilene Ferreira de Oliveira
- Lena Ferreira
O círculo
é astuto:
enrola-se
envolve-se
autofagicamente.
Depois
explode
̶ galáxias! ̶
abre-se
vivo
pulsa
multiplica-se
divindadecírculo
perplexa
(perversa?)
o unicírculo
devorando
tudo.
...
(Orides Fontela)
Aline de Mello Brandão
(do livro Abaúna e outros poemas)
Adília Lopes
Aqui nesta janela, com todo o olhar para fora
o mundo todo me parece falsa paisagem,
e meu pensar não é mais que uma miragem,
e o tempo é círculo vicioso que a tudo devora,
tudo que é material, a mais concreta bobagem!
Há em mim uma certeza de que a verdade
está além de qualquer humano pensamento,
em sopa de mim, poeira de estrelas ao vento
e tudo que me é palpável me parece vaidade,
a tudo em mim se faz silente constrangimento.
Ao certo a vida deveria ser muito além
de ter boletos pagos, e de todos esses vícios
de ter nem sei o que, moderna fogueira de Salém.
Ó Santa Aquisição de posses do moderno amém!
Quão tola esta marcha surreal do possuir vazios...
Joselito De Souza Bertoglio
Maram-Al-Masri (poeta síria)
Benditos sejam os trapos, os retalhos
Os papéis, tesouras e enchimentos
As fitas, os laços, os rolos e pincéis de tinta
Bendito o gesso, e a cola , a água rás
E as pilhas velhas de jornais
Benditos os alfinetes e os paps
E a trena e as linhas de algodão
As agulhas e o dedal em minha mão
Benditas sejas as fitas coloridas, as de poá
E os botões de bichinhos, e os velcros
As sinhaninhas que eu gosto de trançar
Também os berloques benditos
E os fios finos e grossos
Os vasilhames vazios e as coisas imprevistas
Que transformo em artesanato e me recrio.
(Cristhina Rangel)
No ventre dourado do domingo
Os fatos se entesouram
Ninguém explica a mulher que surge
Nua, das águas quentes do mar da costeira...
Alma que anseia ser peixe
E paradoxalmente voar
Alma que anseia ser pássaro
E absurdamente ser pedra fincada no chão...
No colo quente de um domingo de sol
A verdade é um corpo moreno
Que vaga nas abas das ondas
Como um milagre singularmente bonito
Alma que anseia ser deusa
Mesmo sendo precariamente humana
Alma que anseia o sagrado
Paradoxalmente profana.
(Radyr Gonçalves)
deixa que o dia corra como devenão da forma que se escrevenão tão cheio de ilusõesdeixa que a tarde cante os seus senõese se a brisa fizer grevebebe a calma longa e levedeixa que a noite chegue e que sossegueas prováveis afliçõescansaço e indisposiçõesdeixa que o manto das constelaçõesdo teu sono se encarreguee a lua teus sonhos reguedeixa que o dia volte em outro temalivre e, livre, sê poema;notas leves às canções
Lena Ferreira (www.parescencias-lenaferreira.blogspot.com.br)
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
Conceição Evaristo (Poemas da Recordação e Outros Movimentos)
de novo, e leve na tua presença,
aspiro o aroma que me propicia
alívio ao peso da breve sentença
que a noite julgou certa para o dia
sim, visitar-te é-me recompensa
pudesse, mais que casa, far-te-ia
meu lar de espumas pois tens na despensa
conchas de esperança e de poesia
nos teus lençóis, líquidos, azulados,
sonhos cochilam por ondas ninados
depois de alimentados por teu seio
tua brisa, um beijo entre o suave e o vasto,
soprada sobre os detalhes mais castos,
deita e dispensa dizer-me a que veio
( Lena Ferreira)
Quando meu pai era menino
E o mundo cabia no embornal
Tristeza e felicidade
Eram palavras supérfluas
No fim do fundo de Minas Gerais
Quase ninguém sabia
Que os generais matavam
Tampouco se podia suspeitar
Que quem morria
(eu nem nascido)
Éramos todos
Lá onde o Rio Grande despontava
Um dia, sob os pés de buriti,
Meu pai sentiu saudades
Quis lamber o mato
Encontrar frutas do cerrado
Seriguelas, araçás e muricis
Mas ele já não era menino
E nem havia mais cerrado
Eu, também velho, olhava
O tempo sem fé
O açúcar amargava o dia
E insistia em nos avisar
Que o mundo agora é grande
Grande e triste demais
(Alexandre de Paula)
Para além da vidraça
há um grande luar de neve...
Vem comigo!
Sobre o meu braço amigo
pousa o teu braço longo e leve,
leve e longo como uma espiral de fumaça...
Há um grande luar de neve
para além da vidraça...
Outono. Há nervos no ar... Tudo está doente...
A lua é como um sol convalescente,
e a luz da lua é uma saudade fria:
a saudade noturna
da luz do dia...
Anda um áspero voo de asas pretas
dentro da noite taciturna
e doentia:
são folhas mortas, são as borboletas
da melancolia...
Agora, sobre a felpa das alfombras,
vamos sonhando silenciosamente,
sombriamente,
num nimbo de silêncios e de sombras.
E, sob a bênção pálida da lua,
vão sempre juntas, sempre juntas
a tua sombra e a minha sombra: a tua,
toda repleta de perguntas,
num grande gesto bom de quem perdoa;
a minha, toda cheia de respostas,
numa atitude mansa e boa
de quem te segue e vai rezando de mãos postas...
És mais alma que corpo: és quase imaterial...
Tua sombra parece a de uma alma, parece
o reflexo de um prisma de cristal.
E, de tão clara, ela escurece
ainda mais minha sombra que caminha
para onde a tua me conduz...
Porque a minha
é sempre sombra; e a tua sombra é quase luz...
(Guilherme de Almeida, "Encantamento" in "Toda a Poesia", Tomo V, pg 61-62, Livraria Martins Editora S.A., São Paulo, 1952)