além deste vagar

além deste vagar, um caminho extenso,

debaixo de uma chuva que não para

meus olhos correm enquanto eu, só, penso:


- por que meu coração ainda dispara

se lembro da poética seara?


um campo em flores de versos; imenso,

desabrochado em rimas ricas,  raras 


incauto jardineiro, me convenço

de que esta chuva que cai sem dar trégua

encharcando o caminho em mais de léguas

são lágrimas do meu peito em estio


além deste vagar, meu olhar se deita

e planta um verso calmo, que se ajeita

entre a semente, o tempo e o vento frio


Marilene Ferreira de Oliveira 

- Lena Ferreira 

Alcoólicas-I

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livro da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha púmblea, me casaco rosso
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.

A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é liquída.
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussuras: ah, a vida é liquída.

(Hilda Hilst, in Alcoólicas)

Círculo

O círculo

é astuto:

enrola-se

envolve-se


autofagicamente.


Depois

explode

̶  galáxias!  ̶


abre-se

vivo

pulsa


multiplica-se


divindadecírculo

perplexa

(perversa?)


o unicírculo

devorando

tudo.

...


(Orides Fontela)



Outono

Num dia, o sorriso do sol clareou o chão da mata
e ali onde pisara minha infância, no verde úmido – ainda,
busquei a face amiga das folhagens e as viajantes águas,
As mesmas que lavaram meu rosto e as mãos de minha mãe.
Abençoei meu tempo e as horas muitas de vida vivida
e veio a chuva, soberba em ventos, 
assoviando a véspera
do futuro de agora e logo mais. 
Sem medo ou pressa, mergulhei a nudez de meus pés
Nos veios molhados e tranquilos de verde encharcado. 
Então, bem lenta e serenamente, voltei e volteei meu rumo.
Ao regressar, ouvi das bocas que era o meu outono. 

Aline de Mello Brandão

(do livro Abaúna e outros poemas)


Assombros


Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.

Fora, não se dão conta os desatentos.

Entre a aorta e a omoplata rolam
alquebrados sentimentos.

Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.

Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.

Adília Lopes

Mirror


I am silver and exact. 
I have no preconceptions.
Whatever I see I swallow immediately
Just as it is, unmisted by love or dislike.
I am not cruel, only truthful‚
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me,
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully.
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.


(Sylvia Plath)



Aqui nesta janela

Aqui nesta janela, com todo o olhar para fora
o mundo todo me parece falsa paisagem,
e meu pensar não é mais que uma miragem,
e o tempo é círculo vicioso que a tudo devora,
tudo que é material, a mais concreta bobagem!


Há em mim uma certeza de que a verdade
está além de qualquer humano pensamento,
em sopa de mim, poeira de estrelas ao vento
e tudo que me é palpável me parece vaidade,
a tudo em mim se faz silente constrangimento.


Ao certo a vida deveria ser muito além
de ter boletos pagos, e de todos esses vícios
de ter nem sei o que, moderna fogueira de Salém.
Ó Santa Aquisição de posses do moderno amém!
Quão tola esta marcha surreal do possuir vazios...


Joselito De Souza Bertoglio



Toque baião

Toque baião, toque frevo,
toque rock, toque rumba,
mas não toque nesse assunto
toque tudo sempre assim
só não toque nesse assunto
e nunca toque no fim
toque paixão, toque samba,
toque funk, toque mambo
toque só porque eu mando
toque o mundo, toque fundo
eu quero que você se toque
em cada parte de mim


Alice Ruiz

um minuto sobre o lado esquerdo

Um minuto sobre o lado
esquerdo.
Um minuto sobre o lado
direito.
Um pouco de costas,
um segundo sobre o ventre.
Dou voltas no vazio.
Frio nos meus sonhos,
frio na minha cama.
Os ladrões de sono saquearam a minha noite,
um deles
teve pena de mim
e deixou-me a manhã
na mesa-de-cabeceira.


Maram-Al-Masri  (poeta síria)


Apresentação


 Eu quando conheci o Aristeu —
 ele estava em final de árvore.
 E andava por aldeias em santidade de zínias.
 O ermo fazia curvas para ele.
 Subiam-lhe caracóis ao manto.
 O que Gogol falou sobre Akaki Akakievitch,
 eu diria de Aristeu:
 “Um homem que desceu à sepultura sem ter
 realizado um só ato excepcional.”
 Inventava descobrimentos:
 Que a estridência dos grilos durante o cio
 aumenta 75 vezes. E peixe não tem honra.
 Difícil de provar a desonra dos peixes; mesmo
 com fita métrica…
 Como é difícil de provar que em abril as
 manhãs recebem com mais ternura os
 passarinhos.
 Exerci alguns anos ao lado de Aristeu a
 profissão de urubuzeiro (o trabalho era
 espantar os urubus dos tendais de uma
 charqueada).
 Com esses exercícios os nossos
 desconhecimentos aumentaram bem.
 As coisas sem nome apareciam melhor.
 Vimos até que os cantos podem ser ouvidos em forma
 de asas. 

(Manoel de Barros - Caderno de Andarilho)

Prometeu

 
Cobre o teu céu, ó Zeus,
De vapores de nuvens!
E ensaia, como um rapaz
Que decapita cardos,
As tuas artes em carvalhos e cumes!
A minha terra, essa
Tens de deixar-ma,
E a minha cabana,
Que não construíste,
E o meu lume,
Cujo fogo
Me invejas.

Nada conheço de mais pobre
Sob o Sol que vós, deuses.
Mal conseguis alimentar
Com tributos de oferendas
E o sopro de orações
A vossa majestade,
E morreríeis à míngua se não
Fossem crianças e pedintes,
Loucos cheios de esperança.

Quando eu era criança,
Sem saber que pensar nem que fazer,
Voltava para o Sol os olhos
Perdidos, como se lá em cima houvesse
Um ouvido para o meu lamento,
Um coração como o meu
Para se compadecer dos oprimidos.

Quem me ajudou contra
A arrogância dos Titãs?
E da morte quem me salvou,
Da escravidão?
Não fizeste tu tudo sozinho,
Coração, com teu fogo sagrado?
E não ardeste tu, jovem e bom,
Enganado, dando graças de salvação
Aos deuses adormecidos lá em cima?

Eu, venerar-te? Para quê
Aliviaste tu alguma vez
As dores dos que sofrem?
Alguma vez secaste as lágrimas
Dos angustiados?
E quem forjou em mim o Homem, se não
O Tempo todo poderoso
E o Destino eterno,
Meus e teus senhores?

Pensaste porventura
Que eu havia de odiar a vida,
Fugir para os desertos,
Porque não deram fruto todos os sonhos
Que despontaram na aurora da juventude?
Aqui estou eu, criando Homens
À minha imagem,
Uma estirpe igual a mim,
Que sofra e chore,
Goze e se alegre,
E te não respeite,
Como eu.

Johann Wolfgang Goethe (tradução de João Barrento)

Apaixonada

Apaixonada,
saquei minha arma,
minha alma,
minha calma,
só você não sacou nada.

(Ana Cristina César)


Epigrama n° 1

Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis
uma sonora ou silenciosa canção:
flor do espírito, desinteressada e efêmera.

Por ela, os homens te conhecerão:
por ela, os tempos versáteis saberão
que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,
quando por ele andou teu coração.


Cecília Meireles

Rios sem Discurso

Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.

O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase a frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.


João Cabral de Melo Neto

Conversa com Drummond

O mundo amiudou-se, Carlos!
E o nosso coração de ferro, enferrujou-se...

Creia-me, o globo agora cabe na palma da mão,
E a dor humana tornou-se inominável, meu caro...

É tudo tão paradoxo:
Cabem dez mundos em Itabira, Carlos...
Mas dois poemas e meio lotam esse mundinho.

Os homens, Carlos, andam mais apressados do que nunca...
O homem de hoje quase não dorme.
A morte de hoje não é igual à morte de ontem, meu velho!
A morte de hoje manda uma rosa, faz propaganda, se revela no Jornal Nacional...

A vida é tela, Carlos!
Ecrã, azul, ligeira,

Na palma da mão – as riquezas do rei Salomão.
Na sola dos pés – a sutileza de dez Salomés.
Na alma, o velho sentimento amargo do mundo...

As memórias, Carlos, estão guardadas num grão de silício.
A nova poesia cabe no corpo cadavérico de uma postagem no Instagram.
A religião ficou nua. A política ficou louca. O café esfriou, a verve é pouca.

O homem maduro tateia no escuro.
O homem verde padece de sede.

O mundo, meu caro Drummond, 
Serpenteia ensandecido para os braços da morte.
- O fim! O fim! O fim!
Grita um feio anjo serafim.
- É não! É não! É não!
Grita o tal secretário do Cão.

No meio do mundo tem uma cela,
Tem uma cela no meio do mundo,
Vivo preso, iracundo, se eu me chamasse Drummond,
Converteria a imagem, a pedra, o som,
Converteria tudo em poesia, livre eu seria.
E poeta também.


Radyr Gonçalves

Poema à boca fechada

Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.


José Saramago

O Ferrageiro de Carmona


Um ferrageiro de Carmona
que me informava de um balcão:
«Aquilo? É de ferro fundido,
foi a fôrma que fez, não a mão.

Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro;
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde quero.

O ferro fundido é sem luta,
é só derramá-lo na fôrma.
Não há nele a queda-de-braço
e o cara-a-cara de uma forja.

Existe grande diferença
do ferro forjado ao fundido;
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.

Conhece a Giralda em Sevilha?
De certo subiu lá em cima
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?

Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de fôrma
moldadas pelas das campinas.

Dou-lhe aqui humilde receita,
ao senhor que dizem ser poeta:
o ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarreia.

Forjar: domar o ferro à força,
não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga.»


João Cabral de Melo Neto (Serial e Antes, A Educação pela Pedra e Depois)

Fios da Vida

Benditos sejam os trapos, os retalhos 

Os papéis, tesouras e enchimentos 

As fitas, os laços, os rolos e pincéis de tinta 

Bendito o gesso, e a cola , a água rás

E as pilhas velhas de jornais 


Benditos os alfinetes e os paps 

E a trena e as linhas de algodão 

As agulhas e o dedal em minha mão 

 

Benditas sejas as fitas coloridas, as de poá 

E os botões de bichinhos, e os velcros

As sinhaninhas que eu gosto de trançar 


Também os berloques benditos 

E os fios finos e grossos 

Os vasilhames vazios e as coisas imprevistas 

Que transformo em artesanato e me recrio. 


(Cristhina Rangel)


A Mulher Nua


No ventre dourado do domingo

Os fatos se entesouram

Ninguém explica a mulher que surge

Nua, das águas quentes do mar da costeira...


Alma que anseia ser peixe

E paradoxalmente voar

Alma que anseia ser pássaro

E absurdamente ser pedra fincada no chão...


No colo quente de um domingo de sol

A verdade é um corpo moreno

Que vaga nas abas das ondas

Como um milagre singularmente bonito


Alma que anseia ser deusa

Mesmo sendo precariamente humana

Alma que anseia o sagrado

Paradoxalmente profana. 


(Radyr Gonçalves)


DEIXA QUE O DIA CORRA COMO DEVE

deixa que o dia corra como deve
não da forma que se escreve
não tão cheio de ilusões

deixa que a tarde cante os seus senões
e se a brisa fizer greve
bebe a calma longa e leve

deixa que a noite chegue e que sossegue
as prováveis aflições
cansaço e indisposições

deixa que o manto das constelações
do teu sono se encarregue
e a lua teus sonhos regue

deixa que o dia volte em outro tema
livre e, livre, sê poema;
notas leves às canções



Lena Ferreira (www.parescencias-lenaferreira.blogspot.com.br)

 

os vivos morrem logo

os vivos morrem logo
são os mortos que morrem devagar
são os mortos que seguem morrendo depois que os velamos, que os enterramos
passam-se dias, e ainda há fios de cabelo espalhados pela casa
passam-se meses, e ainda vemos o livro
o marcador guardando o fogo da última palavra lida
passam-se anos, e descobrimos na gaveta uma carta escrita do seu próprio punho e que nunca chegou a ser enviada
são lentos, os mortos
demoram-se nisto de nos revelarem em cadernos um amor que foi calado por toda uma vida
são lentos
como é lento o amor
como é lento reconhecer uma letra, que nos faz lembrar as mãos
como é lento imaginar as mãos, que nos fazem lembrar o pulso
como é lento pressentir o pulso, que nos atravessa
como sangue
em uma hora de hemorragia intensa os vivos perdem todo o sangue dos seus corpos
os mortos no entanto continuam sangrando
sangram por décadas, por gerações
sangram como mênstruo, pelos corpos das mulheres que habitam a casa
sangram no silêncio compartilhado entre mãe e filha
entre duas irmãs
.
e topamos com seu rosto renascido
em outros rostos
não só os da família, mas também daqueles que cruzam por nós na rua
e que não conhecemos
.
sempre acabamos encontrando nossos mortos por aí
eles acham jeito de voltar
de permanecer
eles acham jeito de surgir num sorriso
na cor que certos olhos assumem em tardes mais luminosas
num gesto breve
qualquer
os mortos, os mortos
tão vivos

(mar becker)
em: do caderno dos mortos, está em "a mulher submersa", editora urutau

Quando eu morder a palavra


Quando eu morder

a palavra,

por favor,

não me apressem,

quero mascar,

rasgar entre os dentes,

a pele, os ossos, o tutano

do verbo,

para assim versejar

o âmago das coisas.


Quando meu olhar

se perder no nada,

por favor,

não me despertem,

quero reter,

no adentro da íris,

a menor sombra,

do ínfimo movimento.


Quando meus pés

abrandarem na marcha,

por favor,

não me forcem.

Caminhar para quê?

Deixem-me quedar,

deixem-me quieta,

na aparente inércia.


Nem todo viandante

anda estradas,

há mundos submersos,

que só o silêncio

da poesia penetra.


Conceição Evaristo (Poemas da Recordação e Outros Movimentos)


do mar


de novo, e leve na tua presença,

aspiro o aroma que me propicia

alívio ao peso da breve sentença

que a noite julgou certa para o dia


sim, visitar-te é-me recompensa

pudesse, mais que casa, far-te-ia

meu lar de espumas pois tens na despensa

conchas de esperança e de poesia


nos teus lençóis, líquidos, azulados,

sonhos cochilam por ondas ninados

depois de alimentados por teu seio


tua brisa, um beijo entre o suave e o vasto,

soprada sobre os detalhes mais castos,

deita e dispensa dizer-me a que veio



( Lena Ferreira)


Quando meu pai era menino


Quando meu pai era menino

E o mundo cabia no embornal

Tristeza e felicidade

Eram palavras supérfluas


No fim do fundo de Minas Gerais

Quase ninguém sabia

Que os generais matavam

Tampouco se podia suspeitar

Que quem morria

(eu nem nascido)

Éramos todos


Lá onde o Rio Grande despontava

Um dia, sob os pés de buriti,

Meu pai sentiu saudades

Quis lamber o mato

Encontrar frutas do cerrado

Seriguelas, araçás e muricis


Mas ele já não era menino

E nem havia mais cerrado

Eu, também velho, olhava

O tempo sem fé

O açúcar amargava o dia

E insistia em nos avisar

Que o mundo agora é grande

Grande e triste demais


(Alexandre de Paula)


Noturno

Para além da vidraça

há um grande luar de neve...

Vem comigo!

Sobre o meu braço amigo

pousa o teu braço longo e leve,

leve e longo como uma espiral de fumaça...

Há um grande luar de neve

para além da vidraça...


Outono. Há nervos no ar... Tudo está doente...

A lua é como um sol convalescente,

e a luz da lua é uma saudade fria:

a saudade noturna

da luz do dia...

Anda um áspero voo de asas pretas

dentro da noite taciturna

e doentia:

são folhas mortas, são as borboletas

da melancolia...


Agora, sobre a felpa das alfombras,

vamos sonhando silenciosamente,

sombriamente,

num nimbo de silêncios e de sombras.

E, sob a bênção pálida da lua,

vão sempre juntas, sempre juntas

a tua sombra e a minha sombra: a tua,

toda repleta de perguntas,

num grande gesto bom de quem perdoa;

a minha, toda cheia de respostas,

numa atitude mansa e boa

de quem te segue e vai rezando de mãos postas...


És mais alma que corpo: és quase imaterial...

Tua sombra parece a de uma alma, parece

o reflexo de um prisma de cristal.

E, de tão clara, ela escurece

ainda mais minha sombra que caminha

para onde a tua me conduz...

Porque a minha

é sempre sombra; e a tua sombra é quase luz...


(Guilherme de Almeida, "Encantamento" in "Toda a Poesia", Tomo V, pg 61-62, Livraria Martins Editora S.A., São Paulo, 1952)

Sobre todas as coisas

Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado pelo amor de Deus

Ao Nosso Senhor
Pergunte se Ele produziu nas trevas o esplendor
Se tudo foi criado - o macho, a fêmea, o bicho, a flor
Criado pra adorar o Criador

E se o Criador
Inventou a criatura por favor
Se do barro fez alguém com tanto amor
Para amar Nosso Senhor

Não, Nosso Senhor
Não há de ter lançado em movimento terra e céu
Estrelas percorrendo o firmamento em carrossel
Pra circular em torno ao Criador

Ou será que o deus
Que criou nosso desejo é tão cruel
Mostra os vales onde jorra o leite e o mel
E esses vales são de Deus
Pelo amor de Deus
Não vê que isso é pecado, desprezar quem lhe quer bem
Não vê que Deus até fica zangado vendo alguém
Abandonado pelo amor de Deus


(Chico Buarque/Edu Lobo para o balé O Grande Circo Místico, 1982)


Fernando Pessoa


Teu canto justo que desdenha as sombras
Limpo de vida viúvo de pessoa
Teu corajoso ousar não ser ninguém
Tua navegação com bússola e sem astros
No mar indefinido
Teu exato conhecimento impossessivo.

Criaram teu poema arquitetura
E és semelhante a um deus de quatro rostos
E és semelhante a um deus de muitos nomes
Cariátide de ausência isento de destinos
Invocando a presença já perdida
E dizendo sobre a fuga dos caminhos
Que foste como as ervas não colhidas.


(Sophia de Mello Breyner Andresen)


Descansa.

Descansa. 
O Homem já se fez.
O escuro cego raivoso animal
Que pretendias.


Hilda Hilst  (in Via Vazia)


Folhas breves

Somos folhas breves onde dormem
aves de silêncio e solidão.

Somos só folhas ou o seu rumor.
Inseguros, incapazes de ser flor,
até a brisa nos perturba e faz tremer.

Por isso a cada gesto que fazemos
cada ave se transforma noutro ser.


Eugénio de Andrade


A adiada enchente

Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.

Me  tornei  antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E  eu a esperei
como  um  rio  aguarda  a  cheia.

Gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as palavras.

Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome 

(Mia Couto)

Estar estando


A impressão de estar, o lento
espanto que se repete. Aqui e onde, eis como
povoo ao mesmo tempo dois espaços
ou, mais que isso, passo a noite inteira
vivendo as sensações de um fragmento
que me é próprio, ou é-me o corpo todo,
e de repente vai sem deixar marca
entre o que foi e o há de ser. Deslizo
nessa fronteira vã que não separa
nada e ninguém, passado nem presente, simples
e uniforme
faixa de areia da qual jorram palavras,
visões, retratos, intenções. É sempre agora
e nunca, sempre sono e manhã, sempre uma coisa
que num jogo dual se nulifica
para sobrar de nós sempre esse caldo
de frustração e medo -  ou de esperança.

(Leonardo Fróes)

Nasci

Nasci em uma manhã,
e um pássaro voava
em vento suave,
um canto à proteção.
Nasci onde algumas flores
já eram toda primavera,
e um sorriso todo amor.
Nasci diante dos olhos
do encanto.
Delicadamente ser....
dada aos braços
de um poeta.
Reino da palavra,
arte
que não sufoca
da dança a tudo que
inventa,
No quadrado
A explosões.


(Fabiane Linhares)


Mendiga Voz

Y aún me atrevo a amar
el sonido de la luz en una hora muerta,
el color del tiempo en un muro abandonado.

En mi mirada lo he perdido todo.
Es tan lejos pedir. Tan cerca saber que no hay.

...

E ainda me atrevo a amar
o som da luz numa hora morta
a cor do tempo num muro abandonado.

No meu olhar perdi tudo.
É tão longe pedir. Tão perto saber que não há.


(Alejandra Pizarnik) Tradução de Alberto Augusto Miranda


Um homem e uma porta


Um homem carrega uma porta
pela rua fora.
Procura a sua casa.

Ele sonhou
com a mulher, filhos e amigos,
a entrarem através daquela porta.
Agora vê o mundo todo,
a entrar através da porta
da sua casa ainda por construir:
homens, veículos, árvores,
animais, pássaros, tudo.

E a porta, o seu sonho
erguendo-se acima da terra,
anseia ser a porta dourada do paraíso.
Imagina nuvens, arco-íris,
demônios, fadas e santos
passando através dela.

Mas é o senhor do inferno
quem guarda a porta.
E agora deseja apenas ser uma árvore
cheia de folhas,
ondulando na brisa,
para providenciar alguma sombra,
ao seu carregador sem abrigo.

Um homem carrega uma porta
ao longo da rua.
Um homem e uma estrela.

(K. Satchidanandan) tradução de Jorge S. Braga




Como é por dentro outra pessoa?

Como é por dentro outra pessoa
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Como que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.
Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição de qualquer semelhança
No fundo.

(Fernando Pessoa)



Canção do Amor Sereno

Vem sem receio: eu te recebo
Como um dom dos deuses do deserto
Que decretaram minha trégua, e permitiram
Que o mel dos teus olhos me invadisse.

Quero que o meu amor te faça livre,
Que meus dedos não te prendam
Mas contornem teu raro perfil
Como lábios tocam um anel sagrado.

Quero que o meu amor te seja enfeite
E conforto, porto de partida para a fundação
Do teu reino, em que a sombra
Seja abrigo e ilha.

Quero que o meu amor te seja leve
Como se dançasse numa praia uma menina.

Lya Luft



Elegia Lírica (excerto)

Tudo é expressão. 

Neste momento, não importa o que eu te diga 
Voa de mim como uma incontensão de alma ou como um afago. 
Minhas tristezas, minhas alegrias 
Meus desejos são teus, toma, leva-os contigo! 
És branca, muito branca 
E eu sou quase eterno para o teu carinho. 
Não quero dizer nem que te adoro 
Nem que tanto me esqueço de ti 
Quero dizer-te em outras palavras todos os votos de amor jamais sonhados

Alóvena, ebaente 
Puríssima, feita para morrer... 

"Ó 
Crucificado estou 
Na ânsia deste amor 
Que o pranto me transporta sobre o mar 
Pelas cordas desta lira 
Todo o meu ser delira 
Na alma da viola a soluçar!" 
Bordões, primas 
Falam mais que rimas. 
É estranho 
Sinto que ainda estou longe de tudo 
Que talvez fosse cantar um blues 
Yes! 
Mas 
O maior medo é que não me ouças 
Que estejas deitada sonhando comigo 
Vendo o vento soprar o avental da tua janela 
Ou na aurora boreal de uma igreja escutando se erguer o sol de Deus. 
Mas tudo é expressão! 
Insisto nesse ponto, senhores jurados 
O meu amor diz frases temíveis: 
Angústia mística 
Teorema poético 
Cultura grega dos passeios no parque... 

No fundo o que eu quero é que ninguém me entenda Para eu poder te amar tragicamente!


(Vinicius de Moraes)



Noite

Úmido gosto de terra,
cheiro de pedra lavada,
- tempo inseguro do tempo! -
sombra do flanco da serra, 
nua e fria, sem mais nada.

Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,
- lábio da voz sem ventura! -
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.

A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,
- sozinha, com o seu perfume! -
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.

Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento...
- de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta,
entre as estrelas e o vento.

Cecília Meireles (in Obra Completa)


Ad amicos

Em vão lutamos. Como névoa baça,
A incerteza das coisas nos envolve.
Nossa alma, em quanto cria, em quanto volve,
Nas suas próprias redes se embaraça.

O pensamento, que mil planos traça,
É vapor que se esvai e se dissolve;
E a vontade ambiciosa, que resolve,
Como onda entre rochedos se espedaça.

Filhos do Amor, nossa alma é como um hino
À luz, à liberdade, ao bem fecundo,
Prece e clamor dum pressentir divino;

Mas num deserto só, árido e fundo,
Ecoam nossas vozes, que o destino
Paira mudo e impassível sobre o Mundo.

(Antero de Quental)

Estela e Nize

Eu vi a linda Estela e, namorado,
Fiz logo eterno voto de querê-la;
Mas vi depois a Nize, e a achei tão bela
Que merece igualmente o meu cuidado.

A qual escolherei, se neste neste estado
Não posso distinguir Nize de Estela?
Se Nize vier aqui, morro por ela;
Se Estela agora vier, fico abrasado.

Mas, ah! que aquela me despreza amante,
Pois sabe que estou preso em outros braços,
E esta não me quer, por inconstante.

Vem, Cupido, soltar-me destes laços:
- Faze de dois semblantes um semblante,
Ou divide o meu peito em dois pedaços!


(Alvarenga Peixoto)


Amor de Tarde

Es una lástima que no estés conmigo
cuando miro el reloj y son las cuatro
y acabo la planilla y pienso diez minutos
y estiro las piernas como todas las tardes
y hago así con los hombros para aflojar la espalda
y me doblo los dedos y les saco mentiras.

Es una lástima que no estés conmigo
cuando miro el reloj y son las cinco
y soy una manija que calcula intereses
o dos manos que saltan sobre cuarenta teclas
o un oído que escucha como ladra el teléfono
o un tipo que hace números y les saca verdades.

Es una lástima que no estés conmigo
cuando miro el reloj y son las seis.
Podrías acercarte de sorpresa
y decirme «¿Qué tal?» y quedaríamos
yo con la mancha roja de tus labios
tú con el tizne azul de mi carbónico.

(Mario Benedetti)

Amor de tarde

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.

É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer “e aí?” e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono.


(tradução Julio Luiz Gehlen)


Os Três Mal-Amados

Joaquim:

O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés.  Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

(João Cabral de Melo Neto)


As falas do personagem Joaquim foram extraídas da poesia "Os Três Mal-Amados", constante do livro "João Cabral de Melo Neto - Obras Completas", Editora Nova Aguilar S.A. - Rio de Janeiro, 1994, pág.59. (via releituras.com) 


A árvore, a Estrela e a Pequena Mão

A pequena mão desenha a árvore
onde uma estrela se aninha para dormir.
Que dia será o de amanhã
no meio dos escombros onde o eco da súplica
enlouquece os cães famintos?
Quadro trágico para uma noite assim.
A pequena mão pega na borracha
e tenta apagar toda a dor do mundo
e acender com um novo traço
a claridade que resgata a alma.
A estrela acorda numa copa alta
e segue o caminho do que sabe
até encontrar a pequena mão
que tudo reinventa à medida do que somos.
Quando o encontro acontece
já não é noite nem dia, tempo infinito,
mas apenas um lugar onde o choro das crianças
de súbito se transforma em cântico.

A pequena mão desenha tudo
o que falta desenhar para o sonho fazer sentido.
É uma mão frágil mas firme, apenas sábia,
e quando abre o livro azul das manhãs
é sempre para escrever as palavras
que o estrondo abafou nas cidades feridas.
A pequena mão desenha uma árvore,
uma estrela e uma mãe aflita.
Depois desenha uma linha de horizonte,
uma constelação e uma pequena arca.
Um traço basta para criar a luz.
Depois tudo é mistério e júbilo.
Que ao menos esta noite ninguém se esqueça
da árvore, da estrela, da lenda
e da magia da pequena mão afagando a vida.

(José Jorge Letria)


Nesta última tarde em que respiro

Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro.

(António Franco Alexandre)

Sedento

Havia meses que não escrevia 
nem um único poema. 
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder 
e nas causas da obediência. 
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação), 
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros 
e o silêncio da noite. 
Via os girassóis a pendurarem 
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído 
passeasse por entre os jardins. 
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos 
se escondiam nas curvaturas dos muros. 
Dava longos passeios, 
sedento duma coisa só:
dum relâmpago, 
duma mudança, 
de ti. 



(Adam Zagajewski)


Não esqueças sobretudo de olhar devagar


Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é como um poder
sucinto nas mãos.


Não esqueças sobretudo como os cereais
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras. 


Não esqueças sobretudo de olhar devagar. 

(Vasco Gato)