Noturno

Para além da vidraça

há um grande luar de neve...

Vem comigo!

Sobre o meu braço amigo

pousa o teu braço longo e leve,

leve e longo como uma espiral de fumaça...

Há um grande luar de neve

para além da vidraça...


Outono. Há nervos no ar... Tudo está doente...

A lua é como um sol convalescente,

e a luz da lua é uma saudade fria:

a saudade noturna

da luz do dia...

Anda um áspero voo de asas pretas

dentro da noite taciturna

e doentia:

são folhas mortas, são as borboletas

da melancolia...


Agora, sobre a felpa das alfombras,

vamos sonhando silenciosamente,

sombriamente,

num nimbo de silêncios e de sombras.

E, sob a bênção pálida da lua,

vão sempre juntas, sempre juntas

a tua sombra e a minha sombra: a tua,

toda repleta de perguntas,

num grande gesto bom de quem perdoa;

a minha, toda cheia de respostas,

numa atitude mansa e boa

de quem te segue e vai rezando de mãos postas...


És mais alma que corpo: és quase imaterial...

Tua sombra parece a de uma alma, parece

o reflexo de um prisma de cristal.

E, de tão clara, ela escurece

ainda mais minha sombra que caminha

para onde a tua me conduz...

Porque a minha

é sempre sombra; e a tua sombra é quase luz...


(Guilherme de Almeida, "Encantamento" in "Toda a Poesia", Tomo V, pg 61-62, Livraria Martins Editora S.A., São Paulo, 1952)

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