Nesta última tarde em que respiro
A justa luz que nasce das palavras
E no largo horizonte se dissipa
Quantos segredos únicos, precisos,
E que altiva promessa fica ardendo
Na ausência interminável do teu rosto.
Pois não posso dizer sequer que te amei nunca
Senão em cada gesto e pensamento
E dentro destes vagos vãos poemas;
E já todos me ensinam em linguagem simples
Que somos mera fábula, obscuramente
Inventada na rima de um qualquer
Cantor sem voz batendo no teclado;
Desta falta de tempo, sorte, e jeito,
Se faz noutro futuro o nosso encontro.
(António Franco Alexandre)
Sedento
Havia meses que não escrevia
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.
(Adam Zagajewski)
nem um único poema.
Vivia com humildade, lendo os jornais,
pensando no enigma do poder
e nas causas da obediência.
Olhava para os pores-do-sol
(escarlates, cheios de inquietação),
escutava o emudecimento das vozes dos pássaros
e o silêncio da noite.
Via os girassóis a pendurarem
as cabeças ao lusco-fusco, como se um carrasco distraído
passeasse por entre os jardins.
No parapeito recolhia-se
a doce poeira de Setembro enquanto os lagartos
se escondiam nas curvaturas dos muros.
Dava longos passeios,
sedento duma coisa só:
dum relâmpago,
duma mudança,
de ti.
(Adam Zagajewski)
Não esqueças sobretudo de olhar devagar
Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é como um poder
sucinto nas mãos.
Não esqueças sobretudo como os cereais
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.
Não esqueças sobretudo de olhar devagar.
(Vasco Gato)
La Belle Dame sans Merci ( A Bela Dama Sem Piedade)
O what can ail thee, knight-at-arms,
Alone and palely loitering?
The sedge has withered from the lake,
And no birds sing.
O what can ail thee, knight-at-arms,
So haggard and so woe-begone?
The squirrel’s granary is full,
And the harvest’s done.
I see a lily on thy brow,
With anguish moist and fever-dew,
And on thy cheeks a fading rose
Fast withereth too.
I met a lady in the meads,
Full beautiful—a faery’s child,
Her hair was long, her foot was light,
And her eyes were wild.
I made a garland for her head,
And bracelets too, and fragrant zone;
She looked at me as she did love,
And made sweet moan
I set her on my pacing steed,
And nothing else saw all day long,
For sidelong would she bend, and sing
A faery’s song.
She found me roots of relish sweet,
And honey wild, and manna-dew,
And sure in language strange she said—
‘I love thee true’.
She took me to her Elfin grot,
And there she wept and sighed full sore,
And there I shut her wild wild eyes
With kisses four.
And there she lullèd me asleep,
And there I dreamed—Ah! woe betide!—
The latest dream I ever dreamt
On the cold hill side.
I saw pale kings and princes too,
Pale warriors, death-pale were they all;
They cried—‘La Belle Dame sans Merci
Thee hath in thrall!’
I saw their starved lips in the gloam,
With horrid warning gapèd wide,
And I awoke and found me here,
On the cold hill’s side.
And this is why I sojourn here,
Alone and palely loitering,
Though the sedge is withered from the lake,
And no birds sing.
(John Keats)
Ah! que pode afligir-te, infortunado,
Que assim vagueias pálido e sozinho?
O junco à beira-lago já secou;
Não canta um passarinho.
Ah! que pode afligir-te, infortunado,
De feição macilenta e assim desfeita?
O celeiro do esquilo está repleto,
E finda está a colheita.
Um lírio nessa testa eu bem o vejo,
De suor e febre e de aflição molhado;
E uma rosa que murcha em tua face
Logo terá secado.
Uma dama nos prados encontrei,
Toda-formosa, filha de uma fada:
A cabeleira longa, os pés ligeiros,
A vista descuidada.
Tomei-a em meu corcel de passo lento,
E o dia inteiro nada mais vi,não;
Pois pendida de lado ela cantava
De fada uma canção.
E fiz-lhe uma grinalda para a fronte,
E pulseiras e um cinto redolente;
Ela me olhou com ar de quem amasse,
Gemendo suavemente.
Procurou para mim raízes doces,
Orvalho de maná e mel do mato;
E numa língua estranha murmurou:
“Eu amo-te de fato”.
Levou-me para a sua gruta mágica,
E com suspiros fundos me fitou;
Fechei-lhe os olhos tristes, descuidados,
- Meu beijo a acalentou.
Na gruta, sobre o musgo, nós dormimos,
E ali sonhei – que triste a minha sina! -
O último sonho que haja eu sonhado
No frio da colina.
Guerreiros, e reis pálidos, e príncipes,
Todos, de morte pálidos, eu vi,
E me diziam: - “Pôs-te em cativeiro
La belle Dame sans merci”.
Com o negro aviso, seus famintos lábios
Vi escancarar-se à sombra vespertina;
E despertando me encontrei aqui,
No frio da colina.
E este é o motivo pelo qual eu me acho
Aqui, vagando pálido e sozinho,
Malgrado, seco o julgo à beira-lago,
Não cante um passarinho.
John Keats (Tradução de Péricles E. da Silva Ramos)
Alone and palely loitering?
The sedge has withered from the lake,
And no birds sing.
O what can ail thee, knight-at-arms,
So haggard and so woe-begone?
The squirrel’s granary is full,
And the harvest’s done.
I see a lily on thy brow,
With anguish moist and fever-dew,
And on thy cheeks a fading rose
Fast withereth too.
I met a lady in the meads,
Full beautiful—a faery’s child,
Her hair was long, her foot was light,
And her eyes were wild.
I made a garland for her head,
And bracelets too, and fragrant zone;
She looked at me as she did love,
And made sweet moan
I set her on my pacing steed,
And nothing else saw all day long,
For sidelong would she bend, and sing
A faery’s song.
She found me roots of relish sweet,
And honey wild, and manna-dew,
And sure in language strange she said—
‘I love thee true’.
She took me to her Elfin grot,
And there she wept and sighed full sore,
And there I shut her wild wild eyes
With kisses four.
And there she lullèd me asleep,
And there I dreamed—Ah! woe betide!—
The latest dream I ever dreamt
On the cold hill side.
I saw pale kings and princes too,
Pale warriors, death-pale were they all;
They cried—‘La Belle Dame sans Merci
Thee hath in thrall!’
I saw their starved lips in the gloam,
With horrid warning gapèd wide,
And I awoke and found me here,
On the cold hill’s side.
And this is why I sojourn here,
Alone and palely loitering,
Though the sedge is withered from the lake,
And no birds sing.
(John Keats)
Ah! que pode afligir-te, infortunado,
Que assim vagueias pálido e sozinho?
O junco à beira-lago já secou;
Não canta um passarinho.
Ah! que pode afligir-te, infortunado,
De feição macilenta e assim desfeita?
O celeiro do esquilo está repleto,
E finda está a colheita.
Um lírio nessa testa eu bem o vejo,
De suor e febre e de aflição molhado;
E uma rosa que murcha em tua face
Logo terá secado.
Uma dama nos prados encontrei,
Toda-formosa, filha de uma fada:
A cabeleira longa, os pés ligeiros,
A vista descuidada.
Tomei-a em meu corcel de passo lento,
E o dia inteiro nada mais vi,não;
Pois pendida de lado ela cantava
De fada uma canção.
E fiz-lhe uma grinalda para a fronte,
E pulseiras e um cinto redolente;
Ela me olhou com ar de quem amasse,
Gemendo suavemente.
Procurou para mim raízes doces,
Orvalho de maná e mel do mato;
E numa língua estranha murmurou:
“Eu amo-te de fato”.
Levou-me para a sua gruta mágica,
E com suspiros fundos me fitou;
Fechei-lhe os olhos tristes, descuidados,
- Meu beijo a acalentou.
Na gruta, sobre o musgo, nós dormimos,
E ali sonhei – que triste a minha sina! -
O último sonho que haja eu sonhado
No frio da colina.
Guerreiros, e reis pálidos, e príncipes,
Todos, de morte pálidos, eu vi,
E me diziam: - “Pôs-te em cativeiro
La belle Dame sans merci”.
Com o negro aviso, seus famintos lábios
Vi escancarar-se à sombra vespertina;
E despertando me encontrei aqui,
No frio da colina.
E este é o motivo pelo qual eu me acho
Aqui, vagando pálido e sozinho,
Malgrado, seco o julgo à beira-lago,
Não cante um passarinho.
John Keats (Tradução de Péricles E. da Silva Ramos)
Mentiras e Verdades
Só os poetas mentem de forma alicerçada
Conhecem o impróprio – a nudez da nudez
A tez do lado feminino do sol, a ruptura
A gordura da palavra, o doce do verbo
Menti sobre as serpentes e os escorpiões
Sobre os galhos de novembro – e a primavera apressada
Menti pelas madrugadas afora
Menti diante de um dilúculo azul de um dia grande
Só os poetas falam a verdade de forma orquestrada
Conhecem a maçã – a queixa da Eva
O ardil do leviatã – a sonoridade de uma ave soprano
O léxico da pureza, as saias das Terezas
As certezas das Marias...
Falei a verdade quando despedi a lua em uma noite de abril
Quando dobrei a esquina filosófica do pensamento neutro
Quando derrubei os muros
Quando desfiz as malas...
Falei a verdade quando rasguei meu pacto de silêncio
Mas menti toda vez que eu morri
E eu já morri umas mil vezes ao longo da vida
(Eis aqui as feridas!).
(Radyr Gonçalves)
Conhecem o impróprio – a nudez da nudez
A tez do lado feminino do sol, a ruptura
A gordura da palavra, o doce do verbo
Menti sobre as serpentes e os escorpiões
Sobre os galhos de novembro – e a primavera apressada
Menti pelas madrugadas afora
Menti diante de um dilúculo azul de um dia grande
Só os poetas falam a verdade de forma orquestrada
Conhecem a maçã – a queixa da Eva
O ardil do leviatã – a sonoridade de uma ave soprano
O léxico da pureza, as saias das Terezas
As certezas das Marias...
Falei a verdade quando despedi a lua em uma noite de abril
Quando dobrei a esquina filosófica do pensamento neutro
Quando derrubei os muros
Quando desfiz as malas...
Falei a verdade quando rasguei meu pacto de silêncio
Mas menti toda vez que eu morri
E eu já morri umas mil vezes ao longo da vida
(Eis aqui as feridas!).
(Radyr Gonçalves)
Uns Versos
Sou sua noite, sou seu quarto
Se você quiser dormir
Eu me despeço
Eu em pedaços
Como um silêncio ao contrário
Enquanto espero
Escrevo uns versos
Depois rasgo
Sou seu fado, sou seu bardo
Se você quiser ouvir
O seu eunuco, o seu soprano
Um seu arauto
Eu sou o sol da sua noite em claro
Um rádio
Eu sou pelo avesso sua pele
O seu casaco
Se você vai sair
O seu asfalto
Se você vai sair
Eu chovo
Sobre o seu cabelo pelo seu itinerário
Sou eu o seu paradeiro
Em uns versos que eu escrevo
Depois rasgo
E depois rasgo
Sou seu fado, sou seu bardo
Se você quiser ouvir
O seu eunuco, o seu soprano
Um seu arauto
Eu sou o sol da sua noite em claro
Um rádio
Eu sou pelo avesso sua pele
O seu casaco
Se você vai sair
O seu asfalto
Se você vai sair
Eu chovo
Sobre o seu cabelo pelo seu itinerário
Sou eu o seu paradeiro
Em uns versos que eu escrevo
Depois rasgo
E depois rasgo
(Adriana Calcanhoto)
Se você quiser dormir
Eu me despeço
Eu em pedaços
Como um silêncio ao contrário
Enquanto espero
Escrevo uns versos
Depois rasgo
Sou seu fado, sou seu bardo
Se você quiser ouvir
O seu eunuco, o seu soprano
Um seu arauto
Eu sou o sol da sua noite em claro
Um rádio
Eu sou pelo avesso sua pele
O seu casaco
Se você vai sair
O seu asfalto
Se você vai sair
Eu chovo
Sobre o seu cabelo pelo seu itinerário
Sou eu o seu paradeiro
Em uns versos que eu escrevo
Depois rasgo
E depois rasgo
Sou seu fado, sou seu bardo
Se você quiser ouvir
O seu eunuco, o seu soprano
Um seu arauto
Eu sou o sol da sua noite em claro
Um rádio
Eu sou pelo avesso sua pele
O seu casaco
Se você vai sair
O seu asfalto
Se você vai sair
Eu chovo
Sobre o seu cabelo pelo seu itinerário
Sou eu o seu paradeiro
Em uns versos que eu escrevo
Depois rasgo
E depois rasgo
(Adriana Calcanhoto)
Desejo de flor
As flores vão nascer de amores
Vãos, viver
E ninguém vai poder mais amputar sua raiz
O galho que crescer
Os ventos vão reger
E quem sabe dançar a sinfonia os homens gris
Há margaridas bêbadas sobre os balcões
Damas-da-noite no calor de explosões
As flores vão nascer
Do querer, sem querer
Lá no sertão, no Paquistão, no coração mais infeliz
E por que não dizer
No vaso, no prazer
Lá no quintal, no Pantanal, no Rio e em Paris
Delírios sob a lava dos vulcões
Amorosas no entulho das construções
Porque nada impede
Uma flor de nascer
De um desejo sincero
Porque nada impede
Uma flor de querer
O que eu quero...
Delírios sob a lava dos vulcões
Amorosas no entulho das construções
As flores vão nascer
Do querer, sem querer
Lá no sertão, no Paquistão, no coração mais infeliz
E por que não dizer
No vaso, no prazer
Lá no quintal, no Pantanal, no Rio e em Paris
Há margaridas bêbadas sobre os balcões
Damas-da-noite no calor de explosões
Porque nada impede
Uma flor de nascer
De um desejo sincero
Porque nada impede
Uma flor de querer
O que eu quero
(Vander Lee)
Vãos, viver
E ninguém vai poder mais amputar sua raiz
O galho que crescer
Os ventos vão reger
E quem sabe dançar a sinfonia os homens gris
Há margaridas bêbadas sobre os balcões
Damas-da-noite no calor de explosões
As flores vão nascer
Do querer, sem querer
Lá no sertão, no Paquistão, no coração mais infeliz
E por que não dizer
No vaso, no prazer
Lá no quintal, no Pantanal, no Rio e em Paris
Delírios sob a lava dos vulcões
Amorosas no entulho das construções
Porque nada impede
Uma flor de nascer
De um desejo sincero
Porque nada impede
Uma flor de querer
O que eu quero...
Delírios sob a lava dos vulcões
Amorosas no entulho das construções
As flores vão nascer
Do querer, sem querer
Lá no sertão, no Paquistão, no coração mais infeliz
E por que não dizer
No vaso, no prazer
Lá no quintal, no Pantanal, no Rio e em Paris
Há margaridas bêbadas sobre os balcões
Damas-da-noite no calor de explosões
Porque nada impede
Uma flor de nascer
De um desejo sincero
Porque nada impede
Uma flor de querer
O que eu quero
(Vander Lee)
Ao Luar
Quando, à noite, o Infinito se levanta
Á luz do luar, pelos caminhos quedos
Minha tátil intensidade é tanta
Que eu sinto a alma do Cosmos nos meus dedos!
Quebro a custódia dos sentidos tredos
E a minha mão, dona, por fim, de quanta
Grandeza o orbe estrangula em seus segredos,
Todas as coisas íntimas suplanta!
Penetro, agarro, ausculto, apreendo, invado
Nos paroxismos da hiperestesia,
O Infinitésimo e o Indeterminado…
Transponho ousadamente o átomo rude
E, transmudado em rutilância fria.
Encho o Espaço com a minha plenitude!
(Augusto dos Anjos)
O diâmetro da bomba
O diâmetro da bomba era trinta centímetros
e o diâmetro do seu raio efetivo cerca de sete metros,
com quatro mortos e onze feridos.
E em volta deles, num largo círculo
de dor e tempo, espalham-se dois hospitais
e um cemitério. Mas a mulher nova
que foi sepultada na cidade de onde ela veio,
à distância de mais de cem quilômetros,
alarga o círculo consideravelmente,
e o homem solitário chorando a sua morte
na costa distante de um país longínquo
inclui o mundo inteiro no círculo.
E nem menciono o uivo dos órfãos
que alcança além do trono de Deus,
fazendo um círculo sem fim e sem Deus.
Yehuda Amichai
e o diâmetro do seu raio efetivo cerca de sete metros,
com quatro mortos e onze feridos.
E em volta deles, num largo círculo
de dor e tempo, espalham-se dois hospitais
e um cemitério. Mas a mulher nova
que foi sepultada na cidade de onde ela veio,
à distância de mais de cem quilômetros,
alarga o círculo consideravelmente,
e o homem solitário chorando a sua morte
na costa distante de um país longínquo
inclui o mundo inteiro no círculo.
E nem menciono o uivo dos órfãos
que alcança além do trono de Deus,
fazendo um círculo sem fim e sem Deus.
Yehuda Amichai
Medo da Eternidade (Crônica)
Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.
- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.
Clarice Lispector
Barcos de papel
Os poemas em geral são feitos de palavras
no papel
seria melhor se fossem de pano
porque poderiam tomar chuva
ou de madeira
porque sustentariam uma casa
mas em geral são feitos de palavras
no papel
e por isso servem para poucas coisas
entre as quais não se encontra
tomar chuva
ou sustentar uma casa.
Dobrados sobre si mesmos,
lançam-se no mundo
com a coragem suicida
dos barcos de papel.
(Ana Martins Marques, em "A vida submarina". Belo Horizonte: Scriptum, 2009.)
somewhere i have never travelled (nalgum lugar em que eu nunca estive)
somewhere i have never travelled, gladly beyond
any experience,your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near
your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully,mysteriously)her first rose
or if your wish be to close me,i and
my life will shut very beautifully,suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;
nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility:whose texture
compels me with the color of its countries,
rendering death and forever with each breathing
(i do not know what it is about you that closes
and opens;only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody,not even the rain,has such small hands
(e.e. cummings)
nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência,teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto
teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente,misteriosamente)a sua primeira rosa
ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;
nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade:cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira
(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre;só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva,tem mãos tão pequenas
( tradução de Augusto de Campos )
A Palo Seco
1.1.
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
1.2.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;
é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.
1.3.
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.
1.4.
O cante a palo seco
não é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;
é um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia.
2.1.
O silêncio é um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da água;
A pele do silêncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.
2.2.
Ou o silêncio é pesado,
é um líquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;
mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco é um cante
submarino ao silêncio.
2.3.
Ou o silêncio é levíssimo,
é líquido e sutil
que se ecoa nas frestas
que no cante sentiu;
o silêncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.
2.4.
Ou o silêncio é uma tela
que difícil se rasga
e que quando se rasga
não demora rasgada;
quando a voz cessa, a tela
se apressa em se emendar:
tela que fosse de água,
ou como tela de ar.
3.1.
A palo seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:
enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego.
3.2.
A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;
é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.
3.3.
A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contra-pelo,
por ser a contra-vento;
é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente.
3.4.
A palo seco é o cante
que mostra mais soberba;
e que não se oferece:
que se toma ou se deixa;
cante que não se enfeita,
que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está.
4.1.
A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;
a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.
4.2.
A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra
o ferro contra o ferro;
a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.
4.3.
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.
4.4
Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:
não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.
João Cabral de Melo Neto
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;
se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.
1.2.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;
é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.
1.3.
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;
que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.
1.4.
O cante a palo seco
não é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;
é um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia.
2.1.
O silêncio é um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da água;
A pele do silêncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.
2.2.
Ou o silêncio é pesado,
é um líquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;
mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco é um cante
submarino ao silêncio.
2.3.
Ou o silêncio é levíssimo,
é líquido e sutil
que se ecoa nas frestas
que no cante sentiu;
o silêncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.
2.4.
Ou o silêncio é uma tela
que difícil se rasga
e que quando se rasga
não demora rasgada;
quando a voz cessa, a tela
se apressa em se emendar:
tela que fosse de água,
ou como tela de ar.
3.1.
A palo seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:
enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego.
3.2.
A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;
é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.
3.3.
A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contra-pelo,
por ser a contra-vento;
é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente.
3.4.
A palo seco é o cante
que mostra mais soberba;
e que não se oferece:
que se toma ou se deixa;
cante que não se enfeita,
que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está.
4.1.
A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;
a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.
4.2.
A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra
o ferro contra o ferro;
a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.
4.3.
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,
as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.
4.4
Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:
não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.
João Cabral de Melo Neto
A Palo Seco
Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos, lhe direi
Amigo, eu me desesperava
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente, eu grito em português
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente, eu grito em português
Tenho vinte e cinco anos
De sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força deste destino
Um tango argentino
Me vai bem melhor que um blues
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês
(Antonio Carlos Belchior)
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos, lhe direi
Amigo, eu me desesperava
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente, eu grito em português
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente, eu grito em português
Tenho vinte e cinco anos
De sonho e de sangue
E de América do Sul
Por força deste destino
Um tango argentino
Me vai bem melhor que um blues
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em 73
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês
E eu quero é que esse canto torto
Feito faca, corte a carne de vocês
(Antonio Carlos Belchior)
Corona
De minha mão o outono devora suas folhas: somos amigos
Descascamos o Tempo das nozes e o ensinamos a partir:
O Tempo regressa à casca
No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala veracidade.
Meu olhar desce para o sexo da amante:
Vemos-nos,
falamos sombrios,
amamos-nos como papoula e memória,
adormecemos como vinho nas conchas,
como o mar no brilho sanguíneo da lua.
Estamos abraçados à janela, vêem-nos da rua:
é tempo de saber!
é tempo da pedra se preparar para florescer
que a inquietação faça pulsar um coração.
É tempo de ser tempo.
É tempo.
Paul Celan
Descascamos o Tempo das nozes e o ensinamos a partir:
O Tempo regressa à casca
No espelho é domingo,
no sonho dorme-se,
a boca fala veracidade.
Meu olhar desce para o sexo da amante:
Vemos-nos,
falamos sombrios,
amamos-nos como papoula e memória,
adormecemos como vinho nas conchas,
como o mar no brilho sanguíneo da lua.
Estamos abraçados à janela, vêem-nos da rua:
é tempo de saber!
é tempo da pedra se preparar para florescer
que a inquietação faça pulsar um coração.
É tempo de ser tempo.
É tempo.
Paul Celan
se disser mar em voz alta , o mar entra pela janela
todo o santo dia bateram à porta.
não abri, não me apetece ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa.
o vento deve estar de feição.
a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me.
desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer.
que mais posso desejar? e no entanto, não estou alegre nem apaixonado.
nem me parece que esteja feliz.
escrevo com um único fim: salvar o dia.
não abri, não me apetece ver pessoas, ninguém.
escrevi muito, de tarde e pela noite dentro.
curiosamente, hoje, ouve-se o mar como se estivesse dentro de casa.
o vento deve estar de feição.
a ressonância das vagas contra os rochedos sobressalta-me.
desconfio que se disser mar em voz alta, o mar entra pela janela.
sou um homem privilegiado, ouço o mar ao entardecer.
que mais posso desejar? e no entanto, não estou alegre nem apaixonado.
nem me parece que esteja feliz.
escrevo com um único fim: salvar o dia.
(Al Berto)
Inventário (II)
Avó, que pretendias
com as letras escritas,
que palavras dizias
avó, qual a mensagem
que este ouvido perdeu?
Foste tu ou fui eu
avó, quem distraiu
e o trato não cumpriu?
E se estavas calada
tu não dizias nada
ou era erro meu?
Avó, quando morreste,
quem morreu?
Renata Pallottini (Os Arcos da Memória, 1971)
A minha vida é poética
A minha vida é poética:
Paira entre a vaga mentira e a realidade.
O amor me acontece
Como as folhas às árvores,
E tão singularmente,
Que já nem sei se é natural à árvore ter folhas
Ou estar nua...
Ana Hatherly
(Um Ritmo Perdido, 1958)
Paira entre a vaga mentira e a realidade.
O amor me acontece
Como as folhas às árvores,
E tão singularmente,
Que já nem sei se é natural à árvore ter folhas
Ou estar nua...
Ana Hatherly
(Um Ritmo Perdido, 1958)
Viagem
Apago a vela, enfuno as velas: planto
Um fruto verde no futuro, e parto
De escuna virgem navegante, e canto
Um mar de peixe e febre e estirpe farto—
E ardendo em festas fogo-embalsamadas
Amo em tropel, corcel, centauramente,
Entre sudários queimo as enfaixadas
Fêmeas que me atormentam, musamente —
E espuma desta vaga danço e sonho
Com címbalo e símbolos, harmônio
Onde executo a flor que em mim se embebe,
Centro e cetro, curvando-se ante a sebe
Divina — a própria morte hoje defloro
E vida eterna engendro: gero, adoro.
(Mário Faustino)
Um fruto verde no futuro, e parto
De escuna virgem navegante, e canto
Um mar de peixe e febre e estirpe farto—
E ardendo em festas fogo-embalsamadas
Amo em tropel, corcel, centauramente,
Entre sudários queimo as enfaixadas
Fêmeas que me atormentam, musamente —
E espuma desta vaga danço e sonho
Com címbalo e símbolos, harmônio
Onde executo a flor que em mim se embebe,
Centro e cetro, curvando-se ante a sebe
Divina — a própria morte hoje defloro
E vida eterna engendro: gero, adoro.
(Mário Faustino)
Tarefa
Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas imutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
- do amargo e injusto e falso por mudar -
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
(Geir Campos)
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas imutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
- do amargo e injusto e falso por mudar -
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
(Geir Campos)
O Chamado
Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.
Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.
E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai — a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?
A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.
E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o Chamado.
Carlos Drummond de Andrade (do livro Claro Enigma)
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.
Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.
E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai — a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?
A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.
E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o Chamado.
Carlos Drummond de Andrade (do livro Claro Enigma)
Intermezzo
Hoje não posso ver ninguém:
sofro pela Humanidade.
Não é por ti.
Nem por ti.
Nem por ti.
Nem por ninguém.
É por alguém.
Alguém que não é ninguém
mas que é toda a Humanidade.
António Gedeão
sofro pela Humanidade.
Não é por ti.
Nem por ti.
Nem por ti.
Nem por ninguém.
É por alguém.
Alguém que não é ninguém
mas que é toda a Humanidade.
António Gedeão
Gorjeios
Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.
(Manoel de Barros)
inclui a sedução.
É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.
(Manoel de Barros)
Amar
Não é de amor que careço.
Sofro apenas
da memória de ter sido amado.
O que mais me dói,
porém,
é a condenação
de um verbo sem futuro.
AMAR
(Mia Couto)
Sofro apenas
da memória de ter sido amado.
O que mais me dói,
porém,
é a condenação
de um verbo sem futuro.
AMAR
(Mia Couto)
O sangue é um acordo vivo
Meu coração e eu
vivemos juntos
mas não lado a lado
e nunca nos vemos
o sangue é um acordo vivo
que nos ata
(Ana Hatherly)
No fundo dos teus dias apenas o amor ficará
No fundo dos teus dias apenas o amor ficará.
Quando romperem as pedras, quando estalarem os vidros,
quando apartarem as lentas e piedosas cortinas,
não se verão teus ossos que nada foram,
não lerão teu nome borrado pelos ventos,
não encontrarão teu rosto nas arenas,
mas o amor estará onde tu estiveste,
poderão trazê-lo do fundo dos seus dias,
levantá-lo, pô-lo de pé, levá-lo em andores
por um tempo melhor, de beleza sem fome,
por um tempo de magia, sem penas nem justiça,
como um dia há-de ser o tempo para todos.
Raúl Gustavo Aguirre (Argentina)
Quando romperem as pedras, quando estalarem os vidros,
quando apartarem as lentas e piedosas cortinas,
não se verão teus ossos que nada foram,
não lerão teu nome borrado pelos ventos,
não encontrarão teu rosto nas arenas,
mas o amor estará onde tu estiveste,
poderão trazê-lo do fundo dos seus dias,
levantá-lo, pô-lo de pé, levá-lo em andores
por um tempo melhor, de beleza sem fome,
por um tempo de magia, sem penas nem justiça,
como um dia há-de ser o tempo para todos.
Raúl Gustavo Aguirre (Argentina)
Salvamento
Um dia
no planeta
todos os povos
todos os seres
saberão
que uma caneta
e os poetas
(velhos ou novos)
deterão qualquer
malfeito
mau jeito
preconceito
todas as guerras
- e salvarão a Terra.
(Silvia Regina Costa Lima)
no planeta
todos os povos
todos os seres
saberão
que uma caneta
e os poetas
(velhos ou novos)
deterão qualquer
malfeito
mau jeito
preconceito
todas as guerras
- e salvarão a Terra.
(Silvia Regina Costa Lima)
Se eu fosse a ti amava-me
Se eu fosse a ti amava-me, telefonava,
não perdia tempo, dizia-me que sim.
Não hesitava mais, fugia.
Dava o que tens, o que tenho,
para ter o que dás, o que me darias.
Soltava o cabelo, chorava
de prazer, cantava descalça, dançava,
punha em fevereiro um sol de agosto,
morria de prazer, não punha
nenhum mas a este amor, inventava
nomes e verbos novos, estremecia
de medo perante a dúvida de que fosse
só um sonho, fugia
para sempre de ti, de ali, comigo.
Se eu fosse a ti amava-me.
Dizia que sim, vinha
a correr para os meus braços,
ou pelo menos, sei lá, respondia
às minhas mensagens, às minhas tentativas
de saber que é feito de ti, telefonava-me,
que será de nós, dava-me
um sinal de vida, se eu fosse a ti.
Juan Vicente Piqueras
não perdia tempo, dizia-me que sim.
Não hesitava mais, fugia.
Dava o que tens, o que tenho,
para ter o que dás, o que me darias.
Soltava o cabelo, chorava
de prazer, cantava descalça, dançava,
punha em fevereiro um sol de agosto,
morria de prazer, não punha
nenhum mas a este amor, inventava
nomes e verbos novos, estremecia
de medo perante a dúvida de que fosse
só um sonho, fugia
para sempre de ti, de ali, comigo.
Se eu fosse a ti amava-me.
Dizia que sim, vinha
a correr para os meus braços,
ou pelo menos, sei lá, respondia
às minhas mensagens, às minhas tentativas
de saber que é feito de ti, telefonava-me,
que será de nós, dava-me
um sinal de vida, se eu fosse a ti.
Juan Vicente Piqueras
Na trilha
Fiz minha trilha
de cacos de estrelas
machuquei os pés
sangrei desenhos
de rosas vermelhas
ah, andei de joelhos
dos cortes profundos
salpiquei de gotas
espessas, meu rumo
bati com força
socos e pisadas
afundei pedaços
na terra queimada
oh, dancei no fogo
em plena madrugada
amei com intensidade
cheia de graça
e fui amada
Iluminei caminhos
com raios de lua
não busquei o sol
preferi penumbra
é, colar estrelas
trabalho tão duro
esvaziei a alma
dos tons escuros
e continuei ao léu
Cheguei ao fim
olhei pra trás
vi no chão o rito
ah, querer bem mais
e eu disse sim
falsifiquei meus ais
é, busquei a paz
e recebi os astros
nas minhas mãos
inteiros
redesenhei as rotas
desativei os freios
ah, nave ainda torta
alinhei desejos
e avancei sem medo
Dhênova
Vem comigo
vem comigo
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas
iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforma e morre
e já não nos pertence
vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel
vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu
(Al Berto)
ver as pirâmides fantásticas do vento
no interior luminoso da terra encontrarás
o segredo de quartzo para desvendares o tempo
onde contemplamos a fulva doçura das cerejas
iremos para onde os restos de vida não acordem
a dor da imensa árvore a sombra
dos cabelos carregados de pólenes e de astros
crescemos lado a lado com o dragão
o súbito relâmpago dos frutos amadurecendo
iluminará por um instante as águas do jardim
e o alecrim perfumará os noctívagos passos
há muito prisioneiros no barro
onde o rosto se transforma e morre
e já não nos pertence
vem comigo
praticar essa arte imemorial de quem espera
não se sabe o quê junto à janela
encolho-me
como se fechasse uma gaveta para sempre
caminhasse onde caiu um lenço
mas levanto os olhos
quando o verão entra pelo quarto e devassa
esta humilde existência de papel
vem comigo
as palavras nada podem revelar
esqueci-as quase todas onde vislumbro um fogo
pegando fogo ao corpo mais próximo do meu
(Al Berto)
Eu-Mulher
Uma gota de leite
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
(Conceição Evaristo)
me escorre entre os seios.
Uma mancha de sangue
me enfeita entre as pernas.
Meia palavra mordida
me foge da boca.
Vagos desejos insinuam esperanças.
Eu-mulher em rios vermelhos
inauguro a vida.
Em baixa voz
violento os tímpanos do mundo.
Antevejo.
Antecipo.
Antes-vivo
Antes – agora – o que há de vir.
Eu fêmea-matriz.
Eu força-motriz.
Eu-mulher
abrigo da semente
moto-contínuo
do mundo.
(Conceição Evaristo)
Travel
Loving you, flesh to flesh, I often thought
Of travelling penniless to some mud throne
Where a master might instruct me how to plot
My life away from pain, to love alone
In the bruiseless embrace of stone and lake.
Lost in the fields of your hair I was never lost
Enough to lose a way I had to take;
Breathless beside your body I could not exhaust
The will that forbid me contract, vow,
Or promise, and often while you slept
I looked in awe beyond your beauty.
Now
I know why many men have stopped and wept
Half-way between the loves they leave and seek,
And wondered if travel leads them anywhere–
Horizons keep the soft line of your cheek,
The windy sky’s a locket for your hair.
(Leonard Cohen)
Of travelling penniless to some mud throne
Where a master might instruct me how to plot
My life away from pain, to love alone
In the bruiseless embrace of stone and lake.
Lost in the fields of your hair I was never lost
Enough to lose a way I had to take;
Breathless beside your body I could not exhaust
The will that forbid me contract, vow,
Or promise, and often while you slept
I looked in awe beyond your beauty.
Now
I know why many men have stopped and wept
Half-way between the loves they leave and seek,
And wondered if travel leads them anywhere–
Horizons keep the soft line of your cheek,
The windy sky’s a locket for your hair.
(Leonard Cohen)
História Antiga
No meu grande otimismo de inocente
Eu nunca soube por que foi... Um dia,
Ela me olhou indiferentemente;
Perguntei-lhe por que era... Não sabia...
Desde então, transformou-se, de repente,
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente...
Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa...
E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...
(Raul de Leoni)
Eu nunca soube por que foi... Um dia,
Ela me olhou indiferentemente;
Perguntei-lhe por que era... Não sabia...
Desde então, transformou-se, de repente,
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para a frente...
Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa...
E eu sinto, sem no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...
(Raul de Leoni)
Wild Geese (Gansos Selvagens)
Wild Geese
You do not have to be good.
You do not have to walk on your knees
for a hundred miles through the desert repenting.
You only have to let the soft animal of your body
love what it loves.
Tell me about despair, yours, and I will tell you mine.
Meanwhile the world goes on.
Meanwhile the sun and the clear pebbles of the rain
are moving across the landscapes,
over the prairies and the deep trees,
the mountains and the rivers.
Meanwhile the wild geese, high in the clean blue air,
are heading home again.
Whoever you are, no matter how lonely,
the world offers itself to your imagination,
calls to you like the wild geese, harsh and exciting -
over and over announcing your place
in the family of things.
... ... ... ...
Gansos Selvagens
Você não tem que ser bom.
Você não precisa andar de joelhos
e percorrer cem quilômetros de arrependimento no deserto.
Você só precisa deixar que esse animal terno que é o seu corpo
ame o que ele ama.
Fale-me do seu desespero, fale-me dele e eu lhe falarei do meu desespero.
Enquanto isso, o mundo segue adiante.
Enquanto isso, o sol e as gotículas cristalinas de chuva
atravessam paisagens,
pairam sobre os campos e sobre as árvores frondosas
e sobre montanhas e rios.
Enquanto isso, gansos selvagens voam de volta para casa,
nas alturas de um ar puro e azul.
Quem quer que você seja, não importando quão solitário esteja,
o mundo se entrega à sua imaginação,
e o chama como chamaria os gansos selvagens,
estridente e entusiasticamente –
para repetidas vezes anunciar o seu lugar
na família das coisas.
Mary Oliver
You do not have to be good.
You do not have to walk on your knees
for a hundred miles through the desert repenting.
You only have to let the soft animal of your body
love what it loves.
Tell me about despair, yours, and I will tell you mine.
Meanwhile the world goes on.
Meanwhile the sun and the clear pebbles of the rain
are moving across the landscapes,
over the prairies and the deep trees,
the mountains and the rivers.
Meanwhile the wild geese, high in the clean blue air,
are heading home again.
Whoever you are, no matter how lonely,
the world offers itself to your imagination,
calls to you like the wild geese, harsh and exciting -
over and over announcing your place
in the family of things.
... ... ... ...
Gansos Selvagens
Você não tem que ser bom.
Você não precisa andar de joelhos
e percorrer cem quilômetros de arrependimento no deserto.
Você só precisa deixar que esse animal terno que é o seu corpo
ame o que ele ama.
Fale-me do seu desespero, fale-me dele e eu lhe falarei do meu desespero.
Enquanto isso, o mundo segue adiante.
Enquanto isso, o sol e as gotículas cristalinas de chuva
atravessam paisagens,
pairam sobre os campos e sobre as árvores frondosas
e sobre montanhas e rios.
Enquanto isso, gansos selvagens voam de volta para casa,
nas alturas de um ar puro e azul.
Quem quer que você seja, não importando quão solitário esteja,
o mundo se entrega à sua imaginação,
e o chama como chamaria os gansos selvagens,
estridente e entusiasticamente –
para repetidas vezes anunciar o seu lugar
na família das coisas.
Mary Oliver
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