A Casa e o Velho


soleira da porta
rachada criando matinho

beirada de janela
cheia de musgo
quem se importa?

mureta e degrau
de terra batida

telhado quebrado
meio torto
meio capenga
serve
de ninho de passarinho

azulejo azul
antigo e encardido
jogado num canto
esquecido no depois

sofazinho rasgado
era florido
aquele quase estofado

cortina desfiada
de renda
mulher rendeira
mulher rendá

o gato no fogão
esquentando a pança

a galinha na panela
estrangulada numa galinhada

o radinho de pilha
que nem toca mais
só chia e chia 
como água remexida
sobre a louça
desbeiçada
e amanhecida

um fio de luz
querendo entrar
pelos buracos 
do pau a pique
meio na parede
meio no barro

o cachorro
corre magro
arrastando a linguiça
que defumava 
na brasa
rasa do fogo apagado

e o mosquito
passa fome
distraído e sem zumbido
tudo agora sem sentido

mas lá está
ele 
assuntando o céu

tem um rosto
ressecado de sol
tão antigo
debaixo do chapéu
esfiapado de palha seca
sumido nas carnes
insatisfeitas da face

se tivesse dentes
naquela boca escancarada
os rangeria

se tivesse lágrimas
naqueles olhos fundos
as choraria

quem retorna?
ninguém

quem ele espera?
ninguém

nesse cenário
sem nada de novo
bate um coração de penumbra
num peito
espantado e resistente
que medita no sentido
que a vida tem


(Mírian Cerqueira Leite)




Nenhum comentário: